Surpresa! - #grupodeescritamatinal



Casa alugada. O som eu emprestei de um amigo do meu filho. Sempre sempre quis
colocar som para as pessoas e ficar vendo a reação delas diante da minha trilha
sonora. Sonho com isso desde sempre. Em cada momento que estou vivendo penso
em qual música seria a melhor. E a ouço em silêncio.
Fiz maquiagem, afinal são muitos anos para se comemorar. Falei pra moça caprichar
porque é um negócio caro e que não consigo mais fazer sozinha. Não enxergo. Depois
de uma certa idade não tenho mais como ver minha sobrancelha sem os óculos e fica
muito difícil qualquer movimento desses.
A casa tem um quintal grande, gramado. Eu e minha amiga colocamos luzinhas
fazendo um varal de cores. Sempre quis luzinhas no meu aniversário, mas nunca falei
pra ninguém. Sempre imaginei uma festa com cara de festa de filme espanhol.
A comida eu mesma fiz. Pratos coloridos para colocar numa bancada com toalha
branca que colocamos do lado esquerdo, perto da entrada para o salão. Ali fora mesas
e luzinhas e dentro, uma verdadeira night carioca dos anos 90.
Faltavam algumas horas ainda para as pessoas chegarem e escolhi cada uma a dedo.
Chamei as minhas amigas da vida, os meus maridos da vida e pessoas que me
causaram algum mal durante o percurso. Parece que o momento era de desatar nós.
Senti a urgência de fazer essa festa. Senti que esse aniversário era o certo. O escolhido
para “deixar ser” essa cena que viveu aprisionada na minha cabeça por anos.
Na verdade, a cena era de um casamento e não de um aniversário, mas acabei
adaptando para que ela acontecesse. São ajustes. Pequenos ajustes.
E o engraçado é que quando chegou a hora, e pessoas começaram a chegar, entrei
num turbilhão confuso de memórias que me envolviam, memórias boas, sempre boas,
via as pessoas apenas fazendo o bem. Tudo que algum dia eu tive contra elas
desapareceu e só sobraram a música e os sorrisos.
Uma alegria intensa me invadiu e comecei a dançar e dançar. Como no nascimento do
mundo. Enquanto colocava a música. Criei um método: olhava nos olhos de alguém e
escolhia a música a partir do que via lá dentro.
Lá pelas duas, ele entrou no salão. E um foco de luz estava iluminando sua passagem.
Assim como nos filmes, assim como os momentos apoteóticos e clichês do cinema. Era
a música certa. Era o momento. Deixei uma playlist rolando e dancei com ele. Olhos
nos olhos. A música virou o silêncio do universo. E nem era casamento. Era aniversário.
Essa noite durou uma vida.

(Cibele Cipola)

***

O dia amanheceu ensolarado, como um primeiro e belo presente entregue pela natureza. Minha animação era visível. Afinal, era meu aniversário! Fui até o banheiro lavar o rosto, buscando estar desperta para um dia tão caro.

Olhei no espelho e visualizei, no meio da testa, a marca de expressão que não existia há alguns anos. “É, o tempo tá passando”, pensei. “E rápido. Quase 30, já. Parece que foi ontem que eu era uma adolescente descompromissada. Quanta coisa aconteceu de lá pra cá!”.

Olhei mais uma vez o meu reflexo, bem no fundo dos meus olhos. E arrepiei. Um calafrio de amor, daquele quando a gente cruza com alguém amado e enxerga a alma do outro pelo brilho do olhar. Esse outro sou eu.

Quando olho nos meus olhos ressinto o caminho que percorri até aqui. Tortuoso, cheio de picos e vales, alegrias e tristezas, ambivalências. As memórias tem cheiro, cor, sabor, e quando as acesso eu me transporto para minha história.

Consigo assistir aos lances, e compreendo que os bons e maus momentos da minha vida me compõe e tem sua importância. Todos eles. Sou resultado de tudo e todos que cruzaram meu caminho.

Aprendi a me apropriar da minha história, a ser protagonista do meu enredo. Não sou mais coadjuvante, submissa aos desejos alheios e vivendo no automatismo de quem não sabe o que quer.

Hoje me amo indiscriminadamente, acolhendo e reconhecendo as luzes e sombras que há em mim. Sinto-me íntegra e coerente. Busco honrar meus desejos e estabelecer meus limites, entendendo que eu importo.

Parabéns, Ana! Você conquistou muito de si até aqui. E que sua nova volta ao Sol seja de muitas descobertas e a cada dia mais consciência. Eu te (me) amo!

(Ana Flávia Viebrantz Fusinato)

***

No lugar de sempre, com gente de sempre, mas hoje era diferente. Quem estava ali estava ali por um motivo e a gente ria, brincava, se divertia. Mas nada é tão simples quanto parecia. Mais alguém também estava e nenhum de nós sabia. Um espirro entregou, veio de perto do nada. Coração parou. Respiração parou. Tudo parou. Silêncio. Quem foi? Eu não. Nem eu. Silêncio. Todos nós em silêncio. Olhos arregalados. Tempo estático. Peso morto respirando em falso do meu lado. Pelinhos do braço em pé. Gravidade que quase me estabaca. Alguém aponta para um casaco e quem estava perto joga. Ele voa de volta mais pra direita de mim. Tempo estático. Casaco estático parado no ar. Corpo vazio do meu lado coberto. Quanto tempo posso passar sem respirar? Não ouso mexer mais que o olho fixado na periferia do absurdo. É um sonho? Não. Dentro do sonho não. Imóvel. Capuz da invisibilidade deixa visível o invisível. Alguém me tira daqui. Não ouso me mover. Não sei se não quero, se não posso ou não consigo. Silêncio. Acho que nunca fiquei tanto tempo em silêncio. E agora? Casaco parado no ar do jeito que parou. Uma cabeça mais alta que a minha, com ombros, sem corpo. Não se move. Ninguém se move. Nova brincadeira. Quem aqui tem mais medo?



mari desconsi

***

o prenúncio da primavera nos abraços,
afetos minuciosos celebrando mais uma volta ao sol.
dias de amor e cuidado
é o que aniversários sempre significaram.

jamais imaginei te ver chegar nesse dia.
jamais imaginei te ver chegar em qualquer dia.
mas nesse, especificamente, jamais jamais.
jamais pensei que te veria chegar, se esquivando dos balões dourados, tropeçando no terreno irregular das emoções espalhadas pelo chão.
jamais pensei que te veria chegar e, entre suas mãos, uma pequena flor.
jamais pensei que te veria de novo, em qualquer situação.
(exceto talvez em fotos de família que desavisadamente chegam nos feeds nossos de cada dia)

não imaginava escutar de novo sua voz.
não imaginava escutar de novo sua voz me chamando.
não imaginava escutar de novo sua voz me chamando de filha.

não imaginava sentir de novo seus olhos nos meus.
não imaginava que tanto remorso coubesse nos olhos de um pai.
não imaginava que tanto medo tremesse nas mãos de um pai que entrega uma flor à filha estranha.
não imaginava uma oferta de paz. não à essa altura.
não tão tarde no dia e na vida e em nós.

você nunca imaginou que a ausência de uma vida tivesse o tamanho do abismo que você encontrou em mim.
você nunca imaginou quanta dor foi capaz de causar.
você nunca imaginou, pois você não tem imaginação.

jamais imaginei que você envelheceria.
que suas costas se encurvariam,
que rugas chegassem para abraçar seus olhos.
com o tempo, com a ausência, com a falta,
aprendi a te desimaginar da minha vida.
datas especiais e desaniversários,
cotidianos e traumas e violências e celebrações,
você nunca esteve lá, nem aqui, nem em qualquer lugar.
cobri minhas lembranças de você com uma capa invisível,
um manto que, ao te esconder, me protegia de sentir
a falta do pai que você nunca foi pra mim.

e agora, você aqui, parado na minha frente,
nós dois de frente aos muros que erguemos.
mas agora é tarde demais,
a vida anoiteceu para esse evento tardio
e não há o que fazer.

ainda não inventaram palavras para a redenção do não-perdão
necessária ao sobre-viver.

Nirvi

***

Tenho duas grandes amigas, ambas, conheci no meu primeiro dia aqui na Terra. As duas são ciumentíssimas e querem a mim somente uma para a outra, então, fizeram um acordo entre elas (sem o meu conhecimento) de revezarem o tempo comigo. Nasci num dia frio, dia de lua nova. Minha mãe teve complicações antes, durante e depois do parto. Então, vim dois meses antes do previsto. Muito pequena, frágil, sem peso. Fiquei dias no hospital. Nestes dias de internação foi quando minhas amigas mais brigaram. Era um cabo de guerra para ver quem ficaria comigo.

Por fim, houve uma vencedora. Por causa disso, todo 12 de julho minha família fazia questão de comemorar muito. Sempre com festas grandes, presentes, brincadeiras e tudo o que uma criança tinha direito. Mas eu sabia que, dia ou outro, minha outra amiga iria me visitar, mesmo que não fosse no meu aniversário. Então, brincava até dizer chega e antes de dormir na virada para o dia 13 ficava pensando quando este dia chegaria.

Andando de bicicleta na adolescência eu tinha picos de adrenalina tão fortes, que sentia que meu coração ia pular pela boca. Ali foi o início dos indícios da minha luta contra a ansiedade. E naqueles momentos eu via o vislumbre da minha antiga amiga, às vezes, até pedia por ela. Mas então, a amiga mais presente, tomava a rédea e voltava com uma velocidade fugaz. A amiga presente é difícil, intempestiva, imprevisível e muito irônica, mas é melhor do que eu poderia pedir. A outra amiga é só uma camada fina de realidade. Por hora.

Sempre achei que morreria no dia em que nasci. Com 96 anos, pode ser a qualquer momento. E sinto a minha velha amiga adentrando o batente da porta, às vezes dentro do banheiro, perto da pia da cozinha e sempre dentro da minha cabeça. Espero que ela chegue mansa, indolor e pacífica, diferente da amiga que vida, que me fez pelejar esse tempo todo. Venha, minha amiga, a vida te espera. 

(Mariana Ornelas)





 

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