Tenho que nascer todos os dias



tenho que nascer todos os dias. em estado grávido da vida, percorro o tempo em inércia. come-se e bebe-se sem que haja necessidade de qualquer solavanco. perceba o quão potente é a nossa capacidade de caminhar a esmo sem saber por onde passam os caminhos realmente importantes. tenho que nascer todos os dias, saindo desse útero quente que de tão quente congela e de tão congelar, mumifica-me gelo, como as comidas do supermercado. na gôndola no freezer esperando esperando esperando. esperar é uma forma de existir, mas é triste. aí eu me nasço. com a dor do parto abro-me em mãe e filha e removo lentamente o muco. alimento-me do meu leite. nasço. sozinha e ridícula com os olhos fechados e os dedinhos das mãos tentando prender a vida. com o ar entrando feito lâmina nos pulmões. eu escorrego-me no colo e dou um pouco de canção para a dor. nascidas, mãe e filha, caminhamos esfregando uma pele na outra, o bebê dentro do peito para não morrer de fome, a mamãe movimentando-se como pode para matar a sede. hoje, como todos os dias, pari-me. mas precisei cortar na transversal a barriga. com uma faca bem afiada, curvada no banheiro frio, rasguei a pele o medo a pele de novo e a dor e a pele de novo e a água. nasci. carreguei no peito o bebê que nasceu de olhos abertos do espanto. os olhos abertos do bebê do espanto do medo de errar o caminho de nascer e cair na faca da morte.

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