Diante de uma porta - #grupodeescritamatinal


 



Diante de uma porta.

Todos querem chegar lá. Seja lá onde for. Sempre escuto “um dia eu chego lá” e depois? Chega onde? Lá é sempre um conceito abstrato demais para desejos reais demais, mas impraticáveis. É sempre uma constância de portas entreabertas, nas quais você só consegue ver uma escada por trás. Dificilmente as portas estão fechadas, mas são essas que sempre instigam a nossa vontade. Porém, todas elas têm outras escadas atrás. Assim como uma elipse pode existir tanto na matemática quanto na gramática. Ou não existir. Não podemos tocar nas palavras, menos ainda nas equações, piorou se o assunto são as portas dos sonhos. Atrás das entreabertas temos menos curiosidade, menos gana. Porque sabemos que não existe caminho fácil até o “lá”, mesmo que o começo esteja diante dos nossos olhos. Mas por que, às vezes, escolhemos o mais difícil? Sonhos são tão imprevisíveis assim?

É como sonhar com o lançamento de um livro e só pensar no dia da estreia dos autógrafos, sem nunca ter sentado para escrevê-lo. A porta é só a primeira linha do que pode vir a ser algo, mas não é, porque não pode parar ali. Há uma escada a ser subida até chegar a outra porta, que pode estar fechada ou entreaberta. E os sonhos vão se mesclando a necessidade de entrar pelo caminho, seja qual for. Onde é “lá”? Palavras, sonhos, elipses? Também não sei dizer.

(Mariana Ornelas)

***


Ainda é apertado aqui. As paredes são próximas. No alto, um respiradouro. E somos baixos demais. Precisamos subir uns nos outros. E não sabemos subir nem dar a vez. A nossa voz é um filete. Abafado pelo medo.

Escrever é uma ordem: o destemor é um luxo,

a nossa vida é austera.

As paredes são um livro. As pedras são lápis

Ainda não bate luz...

Esperamos a estação própria

Para ler o que está nelas.



Ana Claudia Abrantes

(Segunda-feira, 15 de setembro de 2021, 08:26h)




***

Mais uma vez aqui. O ar tem a mesma leveza de sempre ao entrar em meus pulmões, e por lá rodopia feliz antes de sair escorregando pelas narinas. Inspiro algumas vezes de olhos fechados sentindo o saltitante oxigênio dentro e fora de mim. Um sorriso surge em meu rosto. Eu brincava muito quando era criança, mas nunca imaginei que iria brincar com o próprio ar. Ainda bem que cresci. A grama verde sob meus pés é como uma vasta cama de almofadas, afofando o caminho para qualquer direção que eu siga. Não que nesse lugar direções façam qualquer sentido, pois só uma existe, indo para a ela. E lá está, enorme e imponente como sempre. No meio de um vasto campo sem nada ao redor além de grama e ar, uma porta.





Não é uma porta comum, muito menos incomum. Ela é. Seu excesso de familiaridade atenua os detalhes extravagantes e desconexos. Passo os dedos sob sua madeira aveludada, sentindo a maciez com a qual ela me toca (menos no cantinho direito próximo ao chão, lá tem uma única farpa solitária onde aprendi a não mais me espetar). Nem clara nem escura, sua cor é um marrom vivo de árvore saudável e suculenta. Os desenhos entalhados nela mostram cenas de um mundo desconhecido, amontoadas e misturadas umas nas outras como em Guernica. Tento entender, mas me perco da narrativa no encanto e esqueço o que fazia. Ando em círculos ao seu redor. Ela não leva a nada, não faz nada, não se prende a nada, apenas fica lá, parada e erguida no meio do nada.




A maçaneta quase do tamanho da minha cabeça é de um dourado queimado, antigo, riscado. A única parte da porta inteira que ameaça mostrar a sua real idade, embora eu duvide que seja real de qualquer forma. Não há fechadura e nem chave, apenas porta. Depois de uma eternidade a admirar, coloco as duas mãos na maçaneta e tento girar. Ela desliza sem mostrar resistência alguma e por ela puxo a porta, andando de costas e usando o peso do meu próprio corpo para a abrir. Solto e vou para a frente dela, que poderia ser atrás, e é o mesmo nada que vejo, o mesmo campo e a mesma grama. Atravesso o seu portal e vou para lugar nenhum, não me sinto diferente e não vejo nada novo. Me viro de frente para ela, aberta. Inspiro. O ar saltita para dentro de meus pulmões e desce escorregando pelas minhas narinas.






Mari Desconsi




***





portas fechadas. portas

abertas

atravessadas

derrubadas, empenadas, transparentes

intransponiveis.

cacos desesperados

pedaços pensados,

partidos, pisados,

esquecidos no porta-guadanapos

porta-estandarte,

porta-retratos,

porta-copos e

temperos.

portinholas pequeninas, portões de desesperança.

porta-dores, portadoras de dores partidas

porta-caramelos portando doçuras

poder perceber a vida

meias portas, parte-sombra, perto-luz, pausa-caminhada

portais de grande porte, portas-partos de partidas

comportadas, que descomportam-se ao partir

portinhas por aí, pedaços perdidos parados em toda parte

partir, portar, pertencer, participar

aportar aqui, desaportar acolá.

perto, dentro, fora - travessias ao portador




Nirvi




***




Das aberturas das superfícies do infinito verde no meio do jardim verde. A escuridão do hall que me finca os sapatos nas raízes deixando poeira e ruído impedidos de brotar. São tantos os caminhos, os percalços são tantas as molduras encobrindo quadros, janelas e ventanias Eu me esqueço de chaves que abrem portas, pela razão do próprio esquecimento cá estão, sempre abertas. Eis o motivo de estar sempre a ventar...




(Angélica Amarante)

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Numa das poucas vezes em que foi à praia para descansar, como faziam os turistas, Ademar já não pescava mais como profissão e se dedicava a levantar as paredes das casas de veraneio que cada vez mais tomavam conta da cidade. O mar estava calmo e a praia vazia de turistas. O sol ardia na sua pele já castigada e nem a sombra oferecia qualquer alívio. Ademar lembrou que em dias assim a pesca era farta e que conseguia vender todos os peixes no mercado municipal, e ainda sobrava peixe para comer.

Algo brilhava na costeira, perto de onde Ademar estava, no canto esquerdo da praia. Debaixo daquele sol tudo brilhava e o mar parecia feito de pequenos pedaços de espelho, mas aquele brilho na costeira era diferente. Sem nada para fazer e nem a perder naquele dia quente de descanso, Ademar caminhou até o brilho para saciar sua curiosidade. A cada passo que dava o brilho aumentava cada vez mais.

Uma gruta! A porta de entrada era redonda, como se tivesse sido formada em nem um segundo por um fluxo rápido de lava há milhões de anos atrás. Água escorria pelas paredes fazendo com que o brilho do sol refletisse e se multiplicasse como caleidoscópio por toda a gruta, iluminando o maravilhamento no rosto infantil do velho Ademar e, no fundo da gruta, um homem sentado em uma cadeira. O barulho da caneta rabiscando em um caderno aumentava quando Ademar se aproximava de mim. Parei de escrever, olhei para ele, nos cumprimentamos. Ficamos nos olhando por alguns minutos sem dizer palavra. Eu olhava para figura magra, esguia, mas com comportamento e imaginação de criança curiosa que eu descrevia em meu caderno. Ademar via a si mesmo com quase quarenta anos escrevendo sua história.

Acenamos com a cabeça e voltei a escrever. Ademar entendeu o que era tudo aquilo. Se virou em direção a saída, buscou suas coisas na praia e voltou para casa.

Continuei na gruta e escrevi a trajetória de Ademar até sua casa, o que comeu na janta, a cerveja que tomou e o sonho que teve naquela noite.

Amanhã, Ademar vai encontrar com o Dito, um amigo de longa data que não via há mais de 20 anos. Mas essa história fica para amanhã.

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RAFAEL ÉRNICA

***

Porta entreaberta: intervalo, espaço, pausa, oportunidade. 

 

Caminhava eu naquela manhã gelada pelo jardim dos meus pensamentos, sentada no meu sofá com meu café que exalava o perfume da rotina. Espreitava pela janela sem estar a procura de algo lá fora a não ser de mim mesma aqui dentro. Andava então pelos meus afazeres do dia ao mesmo tempo que encontrava no caminho algumas chateações. Sem ligar muito para isso, voltava o pensamento para os meus desejos, caminho deliciosamente irresistível, poderia morar ali, ou pegar sempre essa estrada, imaginando uma ou duas coisas que fariam meu dia valer a pena sob a ótica do tesão, mas caia novamente na estrada dos meus afazeres. O cheiro do gosto do café amargo na boca, me amarrava ainda mais em divagações, distrações, preocupações e medo. Seguia a olhar pra janela, a de fora, porém, vendo dentro. Caminhava agora pelo labirinto do eu tenho, um lugar um tanto seguro eu diria, porém fácil de me perder. Enrolada se sairia dali pela direita ou esquerda, ainda não tinha ao certo a definição material que me aprisionava naquele momento. O que eu iria comprar, o que eu iria vestir, a onde ir, o que acumular hoje? Sem mutio perceber minutos depois saída apontava ao leste. O café ainda está quente, tomo mais gole, encolhida no sofá continuo a olhar para a janela de dentro e de fora também. Penso agora naquela gaveta de necessidades que sempre deixo fechada, para priorizar a gaveta alheia. Passo por ela quase sem perceber que ela existe e sigo caminhando, e rapidamente reencontro o caminho dos afazeres do dia, flores planilhadas, som ao fundo de desespero com um cheiro de ego e tristeza talvez. Caio então na janela que me leva a paisagem das dúvidas e dos “e se”. E se eu tivesse sido aquilo, ou aquilo outro? E se tivesse feito outra escolhas e tivesse tido outros desejos? E se eu fosse outra pessoa? Adoro o caminho do “e se”, acho que poderia morar aqui também. Me perco horas na companhia desse caminho bem atraente, sarcástico e eu diria divertido. Bebo mais um gole do meu café e percebo que ele já está gelado. Apoio a xícara na mesa, volto a me encolher no sofá e olhar novamente para a janela de dentro. Retomo a caminhada pelo caminho dos afazeres. Agora ele parece que está um pouco mais comprido, com ranço e um pouco de raiva caminho mais  um pouco sobre ele e novamente caio nas estradas dos desejos, do tesão e da tensão de não poder viver sempre ali, volto para o caminho dos afazeres. Porém sem saber o porque me aparece à frente uma porta entreaberta. Estranha e não muito familiar  uma porta de madeira, verde clarinha, desbotada, desgastada, bonita eu diria, está entreaberta. Lá dentro é escuro, mas o cheiro é bom, tem cheiro de paz , de vida, e eu estou do lado de fora. Com delicadeza dou um leve toque e o ranger que sinaliza a falta de óleo canta mistérios para mim. O que tem ali? Parece o caminho para a minha alma, para a minha essência, para aquilo que realmente sou. Um frio na barriga me sinaliza que ali talvez seja o início de uma jornada fascinante incrivelmente divina. Em um ato de entrar ou fechar a porta relembro das demais estradas, portas e janelas já vislumbradas, alcançadas, conquistadas, e também confortáveis e familiares. Então me lembro dos meus afazeres. Nossa, penso eu, já são tantas horas e eu aqui pensando em nada no sofá. Com força fecho a porta entreaberta, encho novamente minha caneca de café, levanto do sofá e vou pra vida. Afazeres, desejos, matéria, afazeres, café, desejo, matéria, onde será que estava aquela porta mesmo?  

 

Gabriela Lyra 15/09/2021 

***

Para abrir portas do mundo
Primeiro abre-se a porta de dentro

A porta já está lá

Se a chave se apressa demais em chegar,
Força o que está dentro vir para fora
Corre-se o risco de não mais fechar

Se a chave muito se demora
Fica como o baú aberto ao fundo do mar
Sempre a vagar, sem destino, sem lar
À-mar

A chave do negócio é o encaixe
algo mágico acontece

abre-fecha
fecha-abre
tempo do querer
ritmo do fazer
espaço do ser

Mas…

Nem toda porta é aberta

Algumas seguem trancadas

Outras são
ar-ré-ganhadas

O segredo do encaixe não está
em tudo mostrar

Há sempre um mistério a se...
que não o é
e ao mesmo tempo
será?

Aquela frestinha que fica
É que faz por curiosidade
Querer saber mais
continuar

Olho mágico do mundo de dentro

(Isabella Koga)



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