Animalidade - #grupodeescritamatinal


 

No princípio era peixe

Ainda dentro, sapo revolucionário, porque no molhado constantemente lavava os pés 

Sua casa era como o saco da barriga da cangurú, só que do lado de dentro

Um tempo depois, não muito longe

virou pintinho,

não foi assim tão rápido, 

mas bem na demora entre a experiência dentro-fora 

com seu bico quebrou a casca


Croc! Tric! 


O som era do pintinho

A partitura da chocadeira Galinha mãe 

Canção de ruptura que não se fez só

Já não era um, mas sim um-um de dois

Melodia que encontram as notas 

FAz SOL LÁ SIm


De pinto a galo grande 

que toma para si sua voz ao nascer do dia

Nascem com com ele a vaca que dá o leite 


logo depois vem o leão, 

caçador 

assim como as comidas vão do líquido ao pastoso e se chega ao sólido, 

aqui já se tem dentes para triturar 

e, o que já se necessitava: devorar!


ESTÔmago

mundo de dentro, 

imensidão de fora.


Mas…

não é o fim


Porque, 

todo fim é também recomeço 


O leão, 

antes de ser elefante sábio e com muitas rugas em sua pele cinza 

passa por


um estado de gato preto da sorte com sete vidas!


cada desafio enfrentado é tempo elaborado


De todos os fins

a carne não mais digerida de dentro

na barriga 

mas em 


d-e~c-o-m~p-o-s-i-ç-ã-o, 


junto a minhoca, 

- seria ela o começo e (d)o fim? 


Não sei, mas, o urubu chegou,

algum tempo depois percebeu 


no chão 


as imensas pegadas do sábio elefante


A chuva caiu, a terra molhou, urubu voou

desapareceram 

aos pouquinhos

como o infinito do cÉU.


(Isabella Koga - A metáfora animal do amadurecimento humano)


***


Só sei voar caindo


No topo da montanha tem um ninho. Estou lá, estou sempre lá. Vejo do alto tudo o que acontece e penso em como é a sensação de ver as coisas no tamanho que elas são. De cima tudo é pequeno e nada pode me tocar. Tenho asas, tenho certeza, mas nem sempre lembro de voar. Do ninho vejo. No ninho fico. Saboreio o ar que passa por entre minhas penas e imagino como seria a sensação de eu passar por entre o ar para variar. Era para eu cair uma vez só e depois aprender a voar, era para eu aprender a ser livre, mas sempre preciso voltar ao topo da montanha e de lá esqueço que consigo sair. Esqueço da sensação de cair em queda livre e, de súbito, abrir as asas e pairar. Esqueço que só com força do meu corpo consigo me impulsionar. Esqueço das distâncias enormes que posso percorrer em segundos, da magnitude que é ver o mundo em movimento, que eu sou o próprio movimento eu sou a magnitude eu sou a velocidade eu sou a liberdade eu sou o voo eu sou a queda eu sou o mundo inteiro e muito mais. Esqueço. Volto. Fico. E como toda vez, agora que parei preciso de um novo empurrão. Vejo o mundo do alto e me assusto com a queda. Esqueço que sou pássaro e sei voar. Esqueço de todas as vezes que já voei. Esqueço que sou capaz. Tenho o universo inteiro ao meu alcance e por besteira deixo de o tocar. Presa em pensamento. Como eu queria ser livre de mim.


(Mari Desconsi)


***


Quando me sinto assim, sinto-me como uma lagarta andando no asfalto. 

Pequena, pisando em solo quente sem saber para onde ir. Pequena, como me sinto dentro de mim, diante dos meus sentimentos tristes e raivosos. Não que eu tenha me diminuído por inteiro. É sentir estes sentimentos me faz encolher, encolher tanto ao ponto de ser bem pequena como uma lagarta. 

A quentura do solo (a trilha que caminha os meus pensamentos) me faz ficar ainda mais pequena. Indefesa. Indecisa. 

O que devo fazer? Enquanto não sei, ficarei aqui queimando. Em silêncio.

(Vanessa V Macena)


***


Olho a fresta da janela, de fora para dentro do quarto, procurando um espaço no qual posso me abrigar da chuva e do sol. Tenho dois olhos esbugalhados, embrenho-me nas cores que o céu pode ter, vários outros pequenos bichos vivem em mim e tenho o meu par, que me ajuda a procurar comida e a caçar galhos perfeitos. Sou um animal desprezado, porém isso não me afeta. Bato as minhas asas fazendo um barulho irritante, deixo quem me odeia ansioso e com medo do jato de merda que posso deixar nas cabeças alheias.

De vez em quando eu bato nas janelas de vidro, completamente desengonçado, as penas voam, meu bico dói e meus olhos se fecham. Muitos de nós já morreram assim, mas eu, ainda não. Tentamos morar em conjunto para nos protegermos e fazemos um barulho com nossa garganta quando queremos nos esquentar. Às vezes escuto as pessoas na rua dizendo que me odeiam, que sou um rato voante, sujo, cheio de doença, asqueroso. Sinto o desprezo chegando, mas voo e saio de perto.

Desprezo, isso o que sentem por mim, pelo menos a maioria de quem cruza meu caminho. Cada vez que escuto algo sobre mim, 10 entre 10 coisas são ruins. Nós, pombos, precisamos criar uma boa envergadura de estima desde sempre, porque qualquer motivo é motivo para nos matar ou simplesmente para tirarem nossas casas de onde as colocamos. Trouxeram-nos de muito longe, sem saber que aqui nos tornaríamos essa legião de pássaros que só querem viver em paz, no meio de um bosque, ou na brecha de um buraco de ar condicionado. Contudo, engana-se quem pensa que somos muito diferentes dos humanos. Vocês também são aos montes, fazem casas que atrapalham outros bichos, criam barulhos esquisitos, destroem tudo o que querem e comem coisas nojentas. A única coisa que nos difere é que vocês jamais sairiam sem se vingar. Nos destroem, pegamos nossas asas e começamos de novo.

Nossa memória é curta, mas jamais seletiva. Então, às vezes, reconstruímos novos ninhos nos mesmos lugares. Brigamos por galhos, cuidamos dos nossos ovos, comemos para sobreviver. O que nos difere de vocês? O desprezo. Mas será? Vocês se odeiam tanto entre si que fica difícil pensar que uma parte ínfima do pensamento alheio é para tentar nos barrar. Mas são autocentrados que sempre há um pensamento de desprezo por qualquer entidade que não seja semelhante. Por isso vocês se odeiam entre si. Criaram todo um sistema de desprezo que tudo o que não for dentro desse padrão de ódio, então não serve. É difícil para vocês pensarem em alternativas que não sejam a destruição completa deste planeta e sistemas controladores de pessoas e animais que não se encaixam neste padrão impossível.

Observo bem como vocês vivem. O desprezo é sempre muito presente, por isso não torno pessoal. Sempre tem um irmão de vocês dormindo na rua, no bosque em que vivemos, e vocês sempre o deixam lá, descoberto, com fome, doente e sem ninguém. Jamais faríamos isso com um dos nossos. Jamais criaríamos uma maneira de fazer parecer que essa miséria é falta de escolha, vontade ou destino. O desprezo é a base do que sustenta toda essa cadeia mortífera que vocês chamam de vida. Vocês, na verdade, odeiam aos outros e a si mesmos, porque não conseguem enxergar que viver em comunhão é justamente isso: adaptar-nos, também, ao mundo que não é de vocês. É isso, o mundo não é de vocês. Só o desprezo. 

(Mariana Ornelas)


***

Quando os primeiros raios de sol começaram a aparecer tímidos no horizonte, Ademar empurrava sua canoa para mais um dia de trabalho. Um grupo de turistas, bêbados desde a noite anterior, empurrava ao lado um pequeno barco a motor em direção ao mar. “Hoje vai ser um dia daqueles...”, pensou Ademar. Com o barulho dos turistas, ele teve medo de que todos os peixes já tivessem ido para outro lugar mais calmo. Seu medo se concretizou logo na primeira puxada de rede: nenhum peixe, nem mesmo um lambari.

Depois de quase uma hora jogando a rede e a puxando vazia, Ademar finalmente ouviu o motor do barco dos turistas. No momento em que zarpavam em direção ao horizonte, um imenso cardume de peixes voadores, assustados pelo barulho do motor do barco, planou sobre a água em direção a canoa de Ademar. O espetáculo dos peixes continuou mesmo quando o barulho do motor já se distanciava no horizonte. Só se ouvia o som dos peixes pulando, abrindo as barbatanas, planando por alguns metros e mergulhando de volta no mar. Depois que o último peixe fez seu último mergulho, um longo silêncio tomou conta do lugar. Ademar não lançou mais a rede. Seria injusto retirar qualquer ser vivo do mar depois do que acabara de ver.

Mesmo horas depois, ainda sentado em sua canoa, Ademar continuava a repassar na lembrança a imagem de todos aqueles peixes dançando em uma coreografia digna das melhores companhias de dança. Ou seriam as coreografias das melhores companhias de dança dignas daquele espetáculo?

Nunca foi tão difícil sair do mar. Era como uma força lhe impedisse, como se aquilo tudo tivesse que ser assimilado ali mesmo. Mas como? Com dificuldade, remou até a praia, guardou sua canoa, esticou sua rede no estendal e voltou para casa. Sentou-se em sua poltrona e, depois de muito pensar e tentar decifrar o enigma daquela dança, pegou sua rabeca como faz todas as noites. Antes mesmo de começar a tocar seu “canto torto”, ouviu os primeiros sons que precedem o cheiro de cigarro, bebida, sexo, gasolina e ouviu os barulhos dos motores, das músicas nas imensas caixas de som e das vozes dos turistas que abafam qualquer manifestação caiçara nessa época do ano.

Suas barbatanas se estenderam e Ademar deu seu primeiro salto, atravessou o teto de sua casa e planou sobre aquele mar de gente. Ao verem aquele espetáculo, todo o barulho da rua se desfez. Todos assistiram ao balé e ouviram o “canto torto” de Ademar. Quando voava sobre a orla, o homem-peixe planou em direção ao horizonte, iluminado pelos últimos raios de sol, e mergulhou no mar.

(Rafael Érnica)

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