Perspectiva - #grupodeescritamatinal
Fotografia: Hildegard Rosenthal |
claro que não sou eu
com a vassoura na mão
uma vontade de varrer
para o fundo
nunca nem vi
essa rua vazia
nem às 7 horas da manhã
a venda
uma mulher
vai passar com as sacolas
ou alguém vai deixar cair um livro
que eu vou ter vontade de roubar
claro que não
se os ovos caíssem
as laranjas caíssem
se esbarrássemos
uns nos outros
ou trocássemos
receitas
de matar baratas...
venha matar as minhas
de madrugada
seria um convite?
é que elas surgem
doentes
e arrastam o cadáver pela casa
tira pra mim
o corpo de cada
e ao fazer isso
coloca
de volta
o sonho
do corpo
seu
à mesa do café
à cama
na lixeira
tapete
para onde
eu precisei
varrer
claro que não
fui eu.
(Segunda-feira, 13 de setembro de 2021, 08:25h)
***
Todo dia quando acordo dou bom dia ao vazio até que me lembro. Olho para o vazio. Choro com o vazio. E mesmo quando me levanto e dou as costas, levo comigo o vazio. Já faz uma semana e dizem que você nunca vai voltar, mas eu espero. Corro para a porta e espero. Fico ali até que sou forçada a sair, mas assim que puder volto e te espero. Observo a rua e todas as pessoas que passam, será que elas te viram? Será que alguém que eu consigo enxergar te conheceu em algum momento? Será que alguém sabe de você? Quero correr, gritar e pedir ajuda, mas não adianta. Já fiz isso e não adianta. Nada adianta, só esperar. Acordo com saudade e durmo com saudade, tudo que existe no meio disso é um borrão. Te espero com o vazio. Te espero no vazio. Eu sou o vazio. Te espero.
Mari Desconsi
***
A primeira vez que suas mãos me tocaram, senti um estranhamento em meu corpo. Não sei se foi a delicadeza firme e desconhecida, ou talvez a surpresa de me tornar, de repente, sua. Um presente dentro de uma caixa embrulhada numa fita de cetim azul, como era moda nessa época. Lembro do seu olhar entusiasmado a me encarar, passando a mão sobre os meus detalhes, abrindo e fechando meu obturador, buscando logo um rolo de filme que coubesse em mim. Seu sotaque também era diferente dos outros, com os erres raspando fundo na garganta. A nossa afinidade aconteceu instantaneamente, ainda que eu não fosse uma Polaroid, essas modernas que foram inventadas bem depois. Lembro a primeira vez que você aproximou seus olhos, posicionando-os atrás de mim, procurando um recorte da nova vida comum nessa grande cidade em outro continente. Daí em diante, ficamos inseparáveis, duas pioneiras registrando imagens de todas as pessoas, em todos os lugares. Cuidadosa que era, me carregava sempre numa bolsinha de couro marrom a tiracolo, com rolos de filmes extra para o caso de algum acabar e um paninho com o qual me lustrava nas horas vagas. Fazia cócegas, como ainda faz essa lembrança.
Houve um dia em que, durante nossas jornadas paulistanas, você sentiu sede, o que deve ser parecido com algum emperramento de mecanismo. Não sei, posso apenas imaginar. Era uma manhã de verão e fazia um calor de derreter as baterias. Acho que eu suaria, se tivesse glândulas pra isso. Como era nossa rotina, percorríamos as ruas despretensiosamente, buscando algo que não sabíamos o que era, mas que sempre se mostrava no momento preciso. Havia poucos comércios abertos, ainda era muito cedo - você sempre foi muito matutina, a despeito da sua profissão preferir a luz da tarde. Você sorriu e falou qualquer coisa em alemão ao ver a confeitaria aberta. Não entendi, mas sorri junto com você, dentro da minha bolsinha-casa. Entramos na única porta aberta da rua, você buscando um refresco e eu, qualquer beirada de sombra pra me esfriar os metais. Enquanto se hidratava, saiu para a rua, observando a rua quase deserta, exceto pelas quatro almas madrugantes na confeitaria. Uma porta se abriu ao lado, a curiosidade em forma de menina com maria-chiquinhas, querendo ver os barulhos das primeiras horas do dia. Num movimento quase automático, me sacou da bolsa, eu já pronta para a ação. Tirou a capa da minha lente e, então, pude contemplar o que seus olhos viam. A confeitaria como um pontinho de vida na rua deserta. Ao lado, outro pontinho de vida com marias-chiquinhas na cabeça, onde tantos outros pontinhos de vida provavelmente nasceram. A menina e sua vassoura, paradas, na porta da casa da parteira, ambas intrigadas com a moça e sua câmera paradas na rua. Quando você resolveu congelar o momento, uma das moças olhava para mim, diretamente. Você não percebeu o movimento, era rápido demais para os seus atentos olhos humanos, mas suspeitei que você apreciaria a sutil coincidência. Soube que estava certa quando estávamos no quarto escuro e você revelou a imagem, seu sorriso entregou a sensação de missão cumprida que senti no apertar do botão.
Aquela imagem te levou a uma jornada que acompanhei de perto, onde as fotografias jornalísticas deram lugar às fotos de crianças brincando pela cidade. Você cuidou muito bem de mim, me manteve limpa, ativa, bem regulada. Em troca, ofereci a você, sempre, o melhor que pude de mim. Faz muito tempo, já não saímos em grandes aventuras rotineiras. Há muito você se foi e sinto muito a sua falta. Do alto da prateleira da minha casa nova, observo a cidade cada vez mais imensa, e nos imagino a percorrer as novas ruas da imensidão paulistana. Porém, me resta admirar a paisagem sem a companhia do seu olhar a me guiar. Continuo aqui, com todas as nossas imagens gravadas nas digitais que você deixou em mim, o retrato fiel do companheirismo de uma vida inteira, como um filme revelado, antigo, mas impossível de apagar.
Nirvi
***
Mais uma mulher está chegando. Mais um bebê vai nascer. Eu aqui, tão pequena, já participei de tantos partos que nem sei contar.
Ajudar minha mãe a ajudar mulheres a se tornarem mães me ensina muito. Não é sobre manobras de parto, ou sobre o que dizer para dar segurança à mulher-mãe.
Aprendo aqui que a parteira é importante, e sem ela muitas mulheres têm complicações e até morrem. Mas ela é só suporte. Quem faz o parto é a mulher.
É a mulher-mãe que faz a travessia entre as primeiras contrações e a coroação. É ela que permite que seu corpo se expanda. É ela que precisa confiar e se entregar ao processo. Para parir, é preciso se entregar ao descontrole.
Mamãe me diz que o controle é tenso, rígido, inflexível. E pro bebê sair é preciso flexibilidade, movimento, entrega. O controle dá uma falsa sensação de segurança, mas só atrapalha.
Pra mim, criança, tudo isso parece mais fácil que pros adultos. Por que é tão difícil abrir mão do controle se, afinal, ele é uma ilusão?
A foto captura o cenário que se quer registrar na história, crava na memória a ilusão que a vida é majoritariamente boa e pacífica. Pudera eu vender fotos que demonstrassem a dura realidade. Teoricamente vivo a bela época.
Atrás de mim um batalhão de gente sua para essa cidade funcionar, a foto comprova, esse chão poderia ser lambido de tão limpo, contudo, nem todos levam nome digno para o trabalho que exercem. Veja, estou falando de trabalho, não ofício. Sem cargo, sem títulos, pessoas relegadas a fazer valer o dia para que outros possam usufruir. Em alguma medida, também sem ser visto, me torno como eles, mais um.
Mais um dia comum. Um dia comum possibilita tanto para aqueles que podem vivê-lo.
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