Escolher e recriar - #grupodeescritamatinal




 O ritual é diário. Ao acordar, caminha até o banheiro e lava o rosto, segue para a cozinha e prepara o café e em seguida se dirige à sala. Abre as cortinas, vira-se para a prateleira, pega o seu livro, e se senta no cantinho esquerdo do sofá.


Recostada na almofada, ela lê por algum tempo. Às vezes uma hora se passa que parece que foram apenas minutos. A leitura a envolve, como um bebê deitado no berço que se mantém encantado e silencioso olhando para o móbile preso ao teto.


Entre um gole de café e outro, lê uma página e sente impelida a parar e refletir. O quanto dela é resultado do que lê? Quantos autores e histórias são referência daquilo que ela quer se tornar?


Definitivamente, a leitura cumpre papel central em sua vida. Todos os mundos (reais ou não) que ela passou a conhecer por meio dos livros a compõem em alguma medida. O que lê não é apenas informação que ela se apropria. Na verdade, as páginas escritas são espelhos que a fazem acessar pedaços ignorados de si.


Com esses pensamentos em mente, ela fecha o livro, o recoloca na prateleira e caminha para viver o dia acompanhada de todas as versões de si que os livros a ajudaram a construir.

(Ana Flávia)

***

essa imagem não me diz nada

composição, padrão, decoração

respiro. abro e fecho os olhos

nada


há um aconchego pré-fabricado

a (des)ilusão de um possível encontro

regado a afetos e bolo de chocolate

mas, um segundo olhar, e nada


não

nada

só essa imagem muda

lábios costurados e olhos arregalados

uma cena de filme de terror

antes do terror

silêncio dos inocentes

get out! corra!

tudo muito bonito, numa

harmonia artificial


desconfio da janela

com sua vista arborizada

não creio na maciez das

almofadas calculistas,

sentadas como se tramassem

o pior dos crimes

a mesa posta - armadilha preparada -

não me engana com as gostosuras convidativas


somente a parede 

na monotonia de seu verde-frio

tons-desvivos em meio aos contrastes

soa aparentemente honesta


aparente

mente


na imagem, a abundância do vazio

é o objeto que mais atrai.


Nirvi

***




(Mademoiselle Minou)

***

Plástico bolha

Chovia. Marina entrou no carro sem saber o que a esperava. No escuro, na chuva, a

visão turva pelo medo do instante. Há poucos minutos estava segura com um casal de

amigos e agora estava saltando num precipício sem corda.

O coração batendo. Muito.

O homem parecia gentil e a levou para algum lugar. Marina não perguntou onde era

esse lugar. E também não sabia onde estava. Era escuro. Chovia. E o caminho até ali

fora tortuoso, mas muito bonito, por dentro da mata. Uma mata densa. Onde o

barulho da chuva nas folhas faz parecer uma sinfonia de plásticos bolha estourando

compulsivamente.

Ela apenas sentia o perfume do caminho e olhava vez ou outra para o homem ao seu

lado sem falar nada. Ele sorria, um sorriso leve, em uma boca fina e delicada em

oposição aos olhos brilhantes e insanos. Seus olhos davam medo. Medo porque não se

sabia. Medo porque não era o de sempre. Medo do que poderia ser.

Dele não sabia o nome sabia apenas a história. Pedaços de uma história que poderia

ser outra. E perdida nessa conversa interior se viu dentro de um apartamento tipo

estúdio, com pé-direito bem alto. Levantou os olhos de leve, saindo de um torpor, e

viu a janela. Enorme janela voltada pra mata.

Um galho torto vinha de fora e alcançava a mesa.

O homem foi até a janela e acendeu um cigarro.

Marina se deteve um pouco ainda congelando a cena em sua cabeça.

Quis ver os detalhes porque sabia que aquele momento era único.

Engoliu o cheiro da mata e soube que ali passava um rio. Olhou em volta e viu pedaços

de uma vida, cordas, muitas cordas, mochilas empilhadas e sujas. Sentiu que tudo era

um pouco sujo.

A sua direita um relógio antigo de chão marcava 10 horas. O relógio era como uma

entidade, ali, ao lado da escada e destoava de tudo que compunha o ambiente. O

relógio brilhava. Vendo o espanto de Maria o homem apenas disse: – Restaurei há

alguns dias.

Com um sorriso de quem acaba de chegar em casa após uma longa jornada, Marina

olhou a pequena mesa posta sob a janela. Pratos brancos, simples. Pratos que

carecem de uma nova história, pratos em branco.


(Cibele Cipola)

Comentários

Postagens mais visitadas