Telefone - #grupodeescrita


 “quê barulho era aquele?” - pensou, ainda de olhos fechados, deitada no sofá. a cabeça atordoada não permitia grandes elaborações e o som agudo, insistente, clamando urgências, também não. o coração respondeu primeiro, apressando as batidas como quem diz: cor-ra! cor-ra! cor-ra! em seguida, sentiu seu corpo levantando sozinho, o tronco rígido, todos os músculos contraídos e desconexos, cada um tentando responder ao comando do seu jeito. a cabeça ainda não estava lá para organizar tudo isso, o raciocínio envolto em sufoco e aconchego em meio à névoa quente e espessa.

quando finalmente conseguiu abrir os olhos, estava sentada com a manta sobre o colo. não reconheceu a estampa, estranhou a textura do sofá. esfregou o rosto numa tentativa vã de acordar. o barulho parecia ter cessado, o que fez os ouvidos descansarem. inspirou fundo, tentando se livrar da sensação de sufocamento. o ar entrando devagar nos pulmões, alívio. a sensação de liberdade quando pulou naquela cachoeira, apesar de já não saber se havia pulado ou não, se era só imaginação, se era seu cérebro tentando dissociar da experiência atual. de repente, não sabia mais o que era real ou não, nada mais era igual…

triiiiimmmmmmm!

de novo aquele barulho! abriu os olhos, tudo ainda embaçado. percebeu um brilho discreto no tapete e deu-se conta de que estava sem os óculos. num gesto rápido, buscou os olhos no chão e colocou-os de volta ao rosto, agora sim!

triiiiimmmmmmm!

triiiiimmmmmmm!

triiiiimmmmmmm!

o som era ritmado, mas não conseguia identificar o instrumento. o monotema do toque despertava lembranças distantes às quais não conseguia acessar. os ouvidos só queriam que aquilo parasse.

triiiiimmmmmmm!

triiiiimmmmmmm!

tentou olhar ao redor, buscar referências. não sabia onde estava. paredes de madeira intimidadoras devolviam seu olhar. a luz parecia se recusar a entrar naquele ambiente fazia muito tempo. uma imagem emoldurada por bordas douradas, várias pessoas posavam paradas, sorrident

triiiiimmmmmmm!

triiiiimmmmmmm!

silêncio.

agora estava desperta. pela janela, a mesma paisagem conhecida. janela adentro, estava em território estranho. como chegou ali? estava sozinha? não havia nenhum barulho além do recorrente agudo que volta e meia insistia em tocar. mas quem tocava aquilo? deveria haver um jeito melhor de fazê-lo, aquele som não era bom. levantou-se e caminhou pelo cômodo. havia uma espécie de estação de preparo de alimentos atrás, mas nada fazia sentido ali. muitos armários, uma fonte de água… já havia visto algo parecido em imagens antigas, “fotos” eram chamadas. mas isso foi há muito tempo, ninguém conseguia viver assim, ainda mais na superfície!

triiiiimmmmmmm!

contrariando seus sentidos, correu sentido ao som. precisava descobrir. desapontada, viu o objeto emissor. uma caixa estranha, ligada a fios enrolados com uma placa circular na frente. seria um jogo? quem estaria jogando? não havia sensores nem botões nem tela nem identificação dos jogadores. havia um bilhete escrito à mão  - “isso definitivamente não é real, ninguém mais faz isso”, constatou enquanto lia - que dizia:

“quando ouvir meu som

é porque te chamo!

trim trim trim

você deve atender

pegue a parte comprida,

seu melhor ouvido

merece uma parte

de onde sai o fio,

coloque ao lado da boca

seja educada e

diga “alô!”

é assim que eles faziam”

triiiiimmmmmmm!

“alô alô alô!”, repetiu freneticamente. o som agudo deu lugar a um ruído, um som que vinha de outro lugar. “alô alô!” repetiu, sem saber o que esperar.

-você queria saber como era, uma voz cordial respondeu pelo fone.

-alô! oi! o quê?

-parabéns, ninguém havia chegado até esse ponto.

-chegar aonde? eu não sei onde estou. com quem falo? é a central?

-você é a atual líder, foi mais longe que qualquer outra. pagou um preço caro, o que deseja agora?

-não sei do que está falando.

-ora, mas havíamos avisado que não deveria escolher pagar com memórias, pois não iria desfrutar adequadamente de sua conquista. você deseja reaver seu pagamento?

-pagamento? memórias? conquista?

-você parece um pouco confusa. gostaria de continuar depois?

-não! não me deixe sozinha aqui! sim, quero meu pagamento de volta!

-sem problemas, senhora. foi uma honra acompanhá-la. procure pela safira líquida, não deve ser difícil de achar nesse cenário. obrigada e até a próxima!

-alô! alô! safira líquida?! alô!

largou o gancho e olhou ao redor, não viu nada que se parecesse com uma safira, muito menos líquida. refez seus passos de volta à sala-estação de alimentos. notou algo sobre a superfície marrom. algo brilhante, azul, nitidamente descolado daquela realidade. só poderia ser aquilo. caminhou com pressa e tomou o vidro nas mãos, duvidando do que deveria fazer. estava cansada demais, desnorteada demais, queria suas memórias de volta. notou algo embaixo do vidro, outra instrução: “não me beba”. já estava sem paciência para tudo aquilo, todas aquelas charadas. se não podia beber, iria banhar. despiu-se das roupas que não eram suas e começou a passar a safira pela pele, em movimentos rituais. pés, pernas, barriga, costas, braços, pescoço, rosto, cabeça. duas gotas restaram, pingou uma cada olho e imediatamente sentiu o chão próximo ao corpo nu.

...

os olhos pareciam grudados, tamanha dificuldade para abri-los. apertou as pálpebras e viu uma silhueta. alguém lhe observava muito próximo do rosto. conseguia sentir o ar quente que lhe saía dos lábios, o formato do rosto embaçado pelo excesso de proximidade, em um zoom forçado aos olhos.

-você conseguiu! ninguém nunca foi tão longe, ouvir ela dizer.

-é sério?

-sim! uma pena que teve de vender suas memórias no final, você teria ido ainda mais! é a campeã!

ao levantar, olhou pela janela, a paisagem era a mesma de onde estava antes: uma imagem antiga de algum deserto com resquícios de vida lá de cima. falsa ou não, convincente aos olhos de quem nunca esteve lá. riu sozinha por aquela ter sido a única coisa familiar no final, justamente o que nunca viu de fato. viu a multidão de olhos-tela lhe observando. a nova campeã do jogo de desarqueologia das sociedades superficiais do mundo pré-subterrâneo estava ali. era ela. e agora, não mais se esqueceria, independente da paisagem.

-nirvi


***


Em sonho, ela andava pelas ruas de uma cidade desconhecida, maravilhada com a arquitetura, o movimento e a atmosfera geral daquele local tão longínquo. Era o que ela imaginava ser uma metrópole, mas não saberia dizer ao certo, pois nunca viu uma fora dos filmes na tv. Ao passarem por ela, as pessoas sorriam de orelha a orelha, como se dessem as boas-vindas. Ela sorria de volta e acenava, se sentindo uma estrela de cinema, mas, espera… Olhando com mais atenção ela percebe que as figuras que um segundo antes lhe ofereciam acolhimento, agora pareciam a sufocar. Elas não tinham olhos, apenas enormes bocas cheias de dentes. Será que eram sorrisos em seus rostos ou algo mais? Ela tenta continuar como se nada tivesse mudado em sua percepção, mas uma das figuras se destaca da multidão e para em sua frente, sem se mover, apenas com dentes arregaçados em sua face e nenhuma janela para dar uma espiada para dentro da alma. Ela tenta ultrapassar, mas as outras continuam andando em bando em suas laterais e a fecham como paredes móveis. Ela encara o sorriso, agora macabro, e sente suas pernas falhando.




TRIIIIIIIIM




Um telefone toca e a desperta no susto. Encharcada de suor, ela tenta se desvencilhar do cobertor totalmente enrolado ao seu redor. Depois de se chacoalhar incessantemente, ela finalmente consegue se libertar e corre para a sala, parando de supetão diante da mesa. 




TRIIIIIIIIIM




Ela vê, mas não acredita. De onde veio esse telefone? A carcaça amarela desbotada em contraste com o móvel recém comprado contribui com a estranheza daquele objeto claramente mais velho que ela e que antes não estava ali. Tem certeza? Sim, ela tem certeza. Só se o irmão… Não, ele viajou na semana passada e ainda não teria voltado. Seria uma pegadinha de alguém? Quem?




TRIIIIIIIIIIM




O telefone inteiro parece dançar junto com o som estridente que emite. É um daqueles antigos que em filmes ela viu as pessoas tendo que girar a rodinha com números para discar, um de cada vez. Ela olha para o resto da sala agora, pela primeira vez no dia de hoje, mas tudo está normal da mesma forma que deixou ontem. A taça de vinho suja de batom na beirada do sofá e a garrafa, agora vazia, aos seus pés. A televisão ligada, mas sem som, mostrando imagens de um desastre natural em algum lugar. A caixa de pizza largada quase intocada na mesa de centro…




TRIIIIIIIIIM




Ela dá um pulo, é impressão sua ou o som ficou mais alto? Parece idiotice ter medo de um telefone, mas também parece idiotice aparecer um telefone antigo do nada na sua casa. E agora ela nota algo mais estranho ainda e que ainda não tinha percebido pelo costume, mas não havia cabo nenhum conectado ao aparelho. Como ele funcionava? Só pode ser uma brincadeira. O irmão voltou mais cedo de viagem e trouxe de lembrança uma pegadinha. Só pode… Num ímpeto de coragem ela pega o fone e o põe na orelha. 




- Alô?




Os pés descalços se contraem no piso gelado de madeira. O sorriso sem olhos de seu sonho vem em sua mente enquanto um arrepio nasce em sua nuca e atravessa o corpo inteiro.






Mari Desconsi


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