Fotografia - #grupodeescrita


 


Nota fiscal


Fernanda França de Oliveira


No clima ameno de uma tarde de fevereiro, Cláudia saiu de casa para fotografar um pequeno evento no centro da cidade. Vestiu-se despretensiosamente, já que não era caso de pompa. Como morava próximo ao local, decidiu ir caminhando, embora no meio do percurso tenha se arrependido da decisão. O sol acobertado pelas nuvens a tinha enganado, sentia o mormaço queimando-lhe a pele. Tentou ajeitar os cabelos, já sentindo o suor escorrer pela face.

O dia estava agitado, como todos os dias de semana no centro do Rio, roncos ensurdecedores de motocicletas, sons constantes de buzinas de automóveis, pedestres com pressa, alguns segurando bolsas e sacolas junto ao corpo, outros com as mãos guardadas nos bolsos, possivelmente protegendo objetos de valor. E os despreocupados, batendo papo na rua depois do almoço, evitando o retorno ao expediente. Ela estava feliz pelo trabalho que tinha conseguido. O aluguel já estava vencido, e o cachê seria providencial.

O imóvel que procurava era na próxima rua. Algo no meio do percurso deteve seu olhar. No interior de uma galeria de lojas, um homem alto, negro e forte era abordado com violência por um segurança. Ela não conseguia ouvir direito, por estar do lado de fora do prédio, mas notou que embora fosse muito maior que o rapaz que o abordava, o homem tinha as mãos na cabeça e uma expressão de terror no rosto. Cláudia, embora temerosa, aproximou-se um pouco mais da cena, até conseguir escutar o que diziam.
O abordado pedia, com a voz embargada, – seria possível que estivesse a ponto de chorar? – para procurar na lixeira próxima uma nota fiscal. Dizia ter descartado o documento por distração. Embora fossem plenamente audíveis seus apelos, o segurança prosseguia com as agressões, empurrando-o, empunhando um telefone celular nas mãos e chamando-o de impropérios que a fotógrafa infelizmente já tinha ouvido antes.
Tirou a máquina fotográfica da bolsa, ainda reticente sobre a atitude que tomaria, já que sentia ser necessária uma intervenção física naquele conflito. Teve medo. Os lojistas e clientes permaneciam inertes, a maioria ostentando uma expressão de satisfação na face. O segurança tornava-se cada vez mais violento, e em determinado momento, sacou a arma do coldre e deu na cabeça do homem desesperado uma coronhada.
Esperando ser irrompida por um pouco de coragem, Cláudia pegou a máquina fotográfica dentro da bolsa, cancelou o “flash” e começou a registrar o episódio.
O homem seguia pedindo para acessar a lixeira; seus apelos pareciam apenas irritar os presentes, a ponto de um dos lojistas buscar uma barra de ferro no interior de seu estabelecimento e começar a também golpear o moço negro, que agora sangrava.
Tirou algumas fotografias do que acontecia e, engolindo o pavor que a acometia, gritou para que parassem. Ninguém pareceu escutá-la. Pediu para que ao menos permitissem que o homem procurasse a nota fiscal, mas permaneceu ignorada.
Decidiu ela mesma vasculhar a lixeira, mas havia notas fiscais demais, muitas molhadas, outras sujas de restos de alimentos. Tentou perguntar ao homem qual delas era a sua, embora ele já estivesse quase desacordado. Ouviu alguns presentes ordenando que se calasse, mas continuou suplicando para que parassem, ao mesmo tempo em que procurava a tal nota e pedia a ajuda de seu silente dono.

Não percebeu ninguém se aproximar dela, mas sentiu um golpe ferroso na cabeça.
Tentou se virar para ver o que a tinha atingido e levou novos golpes que a derrubaram no chão.
Uma enorme tela preta invadiu seu olhar antes que perdesse os sentidos.
Quando acordou, estava sendo carregada por um socorrista. Tentou pedir a ele que pegasse a lixeira, mas ele só respondeu que precisava se acalmar. Virou o rosto para encontrar o de seu companheiro agredido. Sentiu as batidas do coração chegando até as têmporas ao ver um papel alumínio cobrindo um volume muito parecido com um corpo. 
Soube na hora do que se tratava. Tentou se mover na maca que ocupava, o que ocasionou reações contrárias segurando seus braços e pernas e pedidos para que ficasse tranquila.

Manchas pretas apareceram novamente à sua frente. Foram poucos segundos até perder novamente os sentidos, mas pôde ouvir, sem conseguir identificar o interlocutor:

– Era ladrão, saiu da loja sem pagar, celular novo no bolso. O segurança abordou, ele disse que tinha comprado em outro lugar. Nota fiscal que é bom, não tinha. Essa aqui devia ser comparsa, entrou no meio da história sem mais nem menos pra defender o sujeito.

A última coisa que conseguiu pensar foi que não precisava ter visto o início da cena para saber o que tinha se passado. Dentro da bolsa sempre rente ao corpo, aprendera desde menina a guardar as notas fiscais de tudo o que comprava.

***

Testemunha ocular

Com um pouco mais de tempo eu diria que a foto sairia melhor. Talvez então cumprisse o papel de prova e preenchesse essa lacuna que se instalou. Temos um lapso de tempo, sabemos que ele a seguiu até aqui, sabemos porque eu vi. Mas não sabemos o que ocorreu no instante entre a minha foto e a cena do crime. Eu poderia tê-los seguido mais um pouco, poderia ter de fato entrado, subido as escadas e me esgueirado pelo corredor até a sala dela. 
Eu que tenho por hábito fotografar transeuntes, fiquei intrigada e segui o homem porque sua respiração era muito intensa. Ele passou por mim, exalando um aroma suave de álcool e respirando de uma forma que me atraiu. Tinha um compasso rápido, urgente, decidido. Então o segui.

Por duas quadras eu não o perdi, e fui percebendo que ele também seguia alguém, depois de alguns passos identifiquei a mulher a sua frente. Ela ia a passos rápidos tentou se camuflar em meio aos passantes. Sabia que estava sendo seguida. Cpnsegui me posicionar na outra calçada e assim tinha uma visão dos dois. No mesmo compasso. Talvez predador e vítima. Talvez vítima e predador.

Hoje revendo essa cena de perseguição fotográfica e relembrando o que se passou em minha cabeça, confesso que estava envolvida demais para perceber tomar alguma atitude que impedisse o final trágico. Era certo que haveria um final trágico. Então, entraram em um prédio comercial, numa galeria, parei próxima a porta e consegui as fotos. Ele a segurou pelo braço – foto 1 – sem fazer alarde, cochichou algo em seu ouvido – Foto 2 – e subiram a escada. Ele atrás, ela na frente. 

A partir desse momento não consegui mais fotografar, meus pensamentos estavam me levando pra longe, não sei quanto tempo se passou, mas quando me dei conta era hora do almoço. Pensei em comer algo. 

Estava ali, na padaria ao lado, comendo um prato feito quando ouvi os tiros. Foram 3. Eu senti um fisgar no estômago. Eu sabia que havia sido cúmplice. Era certo que aconteceria. Não consegui engolir a carne. Me senti sangue e angústia. 

Hoje estou aqui para me entregar.
Não sei o que aconteceu entre o último click e o prato feito.

Cibele Cipola

Comentários

Postagens mais visitadas