O que tem na sua gaveta? - #grupodeescrita

 Resgate


Em uma breve incursão a meu quarto de criança, depois de instada a me desfazer do que não me servia mais e levar o que quisesse pertencer, encontrei correspondências antigas que não visitava há décadas.

No interior de uma gaveta lotada, em meio a cartões de aniversário e bilhetes sem significado, encontrei um pedaço esquecido de minha vida. Passei boa parte da infância, por causa do trabalho de minha mãe, frequentando agência de Correios e papelaria. Não por coincidência, sempre gostei de envelopes, selos e papéis de carta. Tentei me lembrar da última vez em que redigi uma correspondência. Não encontrei pista em minha memória.

As cartas no fundo da gaveta tinham sido trocadas com alguém que jamais conheci. A menina de uns dez anos de idade, do interior de Minas Gerais, encontrou, nos idos dos anos 90, uma garota de Portugal para com ela se corresponder. Por anos, escreveu e aguardou respostas, religiosamente.

Àquela altura da vida, eu já havia visitado Portugal, mas nunca resgatei as esquecidas lembranças da amiga com quem troquei tantas confidências. Ainda assim, guardei no antigo quarto fotos, endereço, nomes de familiares, preferências e sonhos daquela pessoa que pertenceu a uma parte apagada da minha existência. Será que também fui esquecida pela amiga portuguesa? Será que essas cartas descansavam no fundo de uma gaveta qualquer e um dia seriam encontradas? Ou jaziam em meio ao lixo e jamais voltariam à memória de sua dona?

Busquei o nome da menina nas redes sociais, sem sucesso. Não encontrei informação recente sobre ela, possivelmente nem morava mais no mesmo endereço, nem recebia correspondências. Podia também não querer me responder, se eu a procurasse. Nenhuma de nós era a mesma pessoa.

Sobre a criança brasileira que gostava de se corresponder com uma desconhecida, eu sabia muito. Ela tinha ficado guardada em alguma gaveta escondida dentro de mim, e jamais a consultei sobre qual caminho preferia seguir. Talvez ela estivesse insatisfeita comigo.

Decidi descartar as cartas vindas de Portugal, não sabia se a remetente gostaria de resgatar aquele passado. Eu, por outro lado, gostaria. E era o que iria fazer a partir daquele dia: tirar a menina escondida na gaveta e me dedicar a atender suas vontades e sonhos.

(Fernanda)

***

hoje abri uma gaveta. a mão pegou o puxador e, num gesto automatizado, obedeceu ao nome da coisa: “puxou” a gaveta para fora. mas não havia nada dentro, exceto poeira. muita poeira. fazia tempos que aquela gaveta não era usada ou limpa. sequer olhada com qualquer curiosidade. estava lá num canto, acoplada a uma mesa de cabeceira que já não cabeceirava nada. um móvel herdado, com quase três décadas de vida (nesse momento, provavelmente alguém poderia dizer: “já não se fazem mais móveis como antigamente”), onde foram guardados óculos de leitura, livros, cremes, fios, ferramentas, protetores auriculares e tanta coisa. e foi ao não encontrar nada, ou melhor, ao encontrar os vestígios da ausência das coisas que ali habitaram, que me peguei pensando nas histórias das poeiras que ali estavam. o que elas poderiam contar do que já aconteceu? haverá alguma de quando o móvel ainda era árvore viva, em algum canto do mundo? quantas vieram do corte, da ida à marcenaria, da transformação em pedaços que viraram essa coisa não-árvore? quantas vezes essas poeiras primeiras foram misturadas e esmagadas por objetos do cotidiano que, por sua vez, trouxeram novas poeiras de novos lugares?
olho os fragmentos invisíveis a olho nu que, mundanamente, chamamos sujeira e, numa fração de segundo, me percebo poeira também. fecho a gaveta. outro dia que começa.

-nirvi

***

Gavetas pequenas e gavetas grandes.


Olhando de baixo pra cima vi uma parede com gavetas infinitas. Os puxadores chamaram minha atenção, pois são diferentes uns dos outros e alguns são moles. Derretem. Puxadores que derretem são de gavetas mais difíceis de abrir. Como numa cena de Alice me sinto bem pequena diante dessa montanha de gavetas. Me sinto uma criança com a possibilidade que elas caiam sobre mim.

A gaveta é a porta para o infinito de possibilidades para a criança. Tem uma foto minha, das poucas que existem, bem pequena, abrindo uma gaveta e meu olhar é tão, mas tão brilhante que tem nele tudo que eu sei que esperava da vida. Criança nasce pequena mas com a vida pronta dentro dela e no seu olhar dá pra ver as idades do mundo. São genes hoje em dia. São transferência de coisa acontecida, comprimida num ser pequeno que acha que as gavetas guardam mistérios a serem descobertos.

Certo dia, a terapeuta que nunca falava nada, fez a seguinte interferência: já não é hora de abrirmos essas gavetas? Ao menos uma, devagar... Então gaveta é uma palavra escondida dentro da gaveta. Faz parte dos mistérios que essa coisa guarda. Porque a própria palavra se esconde e brinca de guardar meias.

Finge, esconde sua verdadeira identidade.

Se você tirar todas as meias e olhar para o fundo vazio dela, vai ver que aí que começa o problema, ou a solução. Se ela for de madeira boa talvez seja difícil remover o fundo, mas com a ajuda de algum equipamento é possível. Um serrote? Um machado? Pode ser traumático, mas vai. Se o fundo for de compensado é só ir no jeitinho: você pode entortar de um lado e do outro e sempre vai ter uma canaleta que deixa o fundo deslizar e ser retirado suavemente.

Nem sempre se tem um machado a mão.
Nem sempre os puxadores derretem.

Cibele Cipola

***

A gaveta que engolia as coisas.

 

Sempre que você colocava a mão, tinha uma surpresa!

Quando o espaço ficou tão grande? Que parecia-me caber o braço ... só nunca se acha as chaves, os cartões, as contas e os talões.

Um dia perdi a cabeça, nessa mesma gaveta. Era assim uma cabeça pequena, do chaveiro de ovelha. Só que por fim .. nunca mais se viu a cabeça.

Em um momento de atraso, saí sem as chaves do carro.

Em momentos de aperto, acredito que ela escuta.  Joga tudo no fundo o que estava nas fuças.

 Às vezes eu a fecho com ódio.

 Um dia desses ela me tirou um sorriso, achei algumas fotos.  E ficamos por algum momento as sós.

 Eu e a (as) minha (as) GAVETAS.

(Gislaine)

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Coloquei tudo que era nosso numa caixa e tranquei em uma gaveta antiga. Pensei que melhor seria se as traças corroessem aquela fotografia ridícula, na qual você sorria enquanto segurava minha cabeça para frente. Pensei também que, se fossem boas traças, não destruiriam a carta que te escrevi em 2008 e que, não sei por que motivo, está comigo. Isso me lembra do seu descaso tão costumeiro. Torci para não perder a carta, pois era mais minha do que sua. Sempre foi assim. Eu era mais minha do que sua desde o início. Depois isso foi mudando e eu tive muito medo de me tornar uma mulher que não se pertence.
Não quis jogar nada fora, nem queimar, como me sugeriu minha prima Beatriz. Eu queria seus restos mortos cheirando a mofo na gaveta. Era mais mórbido e mais poético. 
Nunca precisei abrir a gaveta para saber o conteúdo. Mas naquele dia, abri com medo. E não era medo de você, era de mim. Já faz tempo que perdi o medo de você. Foi bem quando percebi a pessoa frágil, mesquinha e pequena que você é. Eu não. Eu sou gigante. Isso encanta e atemoriza, na mesma medida. 
Quando abri nossa caixa, não te vi, nem a mim. Tudo aquilo que me dava náusea e assombrava, todos aqueles montes de merda. Nada estava ali. Tinha só uma foto fria e uma carta fria. Tive vergonha da minha escrita. Chorei. Rezei para ser grande novamente. Rezei para ser diferente de você.

--
Julia Dantas

***
Abri a gaveta

Em meio a minha bagunça mental eu me recordei de você, amor nunca vivido, sem meio, mas com fim. O mais doído e puro amor, por amar quem nós éramos juntos. Mais doído por odiar quem nos tornamos hoje. Almas distantes, sem palavras, sem contato.  Em meio à bagunça do cômodo ao qual habito no momento presente,
desembalando as caixas para viver uma nova vida, encontrei cartas suas.
Cartas que foram tocadas pelas suas mãos, cartas que foram escritas por você para mim, cartas que falavam sobre como era bom viver respirando o mesmo ar que o meu. Abri minha nova gaveta e coloquei todas lá, relutei para não abri-las, para não sentir. Eu não queria sentir... Mas ainda tenho muitas coisas suas nas minhas caixas, e tudo o que eu faço é guardar em uma única gaveta.

Espero que você não tenha coisas minhas guardadas nas suas gavetas, não sou mais eu, sou uma pessoa totalmente nova, com novos sonhos, novas perspectivas, novo modo de pensar, sou mais forte, mais segura, sou mais eu, e antes não era...

Eu amei quem você era, eu amei o que já se foi de você. Hoje somos apenas estranhos, almas distantes, sem palavras, sem contato. E eu tenho coisas do seu antigo eu dentro da minha gaveta.

(Maria Rita)

***

17 anos

Quando eu abri a gaveta, encontrei uma foto minha da adolescência. Rostinho redondo, cabelo longo, camisetão do Guns and Roses e jeans largo rasgado.

Tinha uma expressão que beirava o lânguido. Naquela adolescente habitavam muitos sonhos, muitos planos. Muitos desejos...

O principal deles era o desejo de liberdade.

Ser livre!

Ela queria ser livre!

Eu ainda quero ser livre. Nós ainda não conquistamos aquela tão sonhada e esperada liberdade. Ela queria ser jornalista. Queria aprender francês e morar em Paris. Queria viver longe dos pais, da família e dos conhecidos. Queria uma nova identidade. Queria, talvez, ser ela mesma pela primeira vez.

Será que eu sou livre?

Será que eu sou realmente eu?

Tenho quase certeza que não. Muitas vezes me olho no espelho e não me reconheço. Ela também não se reconheceria.

Nós não nos reconhecemos!

Será que eu ainda posso fazer algo por ela? Podemos nos ajudar?

Ela tem 17. Eu, 34. Às vezes sinto que não há mais tempo para mim. Outras, sinto que tenho todo o tempo do mundo.

Não há como saber.

A nossa única certeza é a de que não podemos nos olhar numa outra foto, daqui dezessete anos, e percebermos que não demos certo.

(Raiani)

***

Abrir a gaveta…



Hoje abri minha gaveta e encontrei minha faixa para maquiagem, ela é branca, aveludada e com um coração rosa e grande no centro.



Essa faixa me lembrou o início da minha fase de autocuidado e despertamento da mulher linda e incrível que eu sou, mas que estava com a alma apagada. Bem apagada.



Fui invadida por tamanha alegria através dessa recordação, eis o nascimento de uma nova versão de mim: uma mulher forte, com sorriso fácil, leve e com a alma colorida. Bem colorida.



Palmira Espíndola 

Comentários

  1. Cibele e Gislaine, que textos potentes! Amei como vocês brincaram com as palavras <3

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